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Estórias da Saga Baleeira nos Açores

Albertino Machado – Antigo Baleeiro
Estórias da Saga Baleeira nos Açores
Por Manuel Cândido Martins
Fotos: Adiaspora.com
23 de Novembro de 2010


 

Manuel Cândido Martins e Albertino Machado

Desde o séc. XVI, altura em que os biscainhos a introduziram naquele território arquipelágico português, os destinos das gentes dos Açores estiveram sempre intrincadamente conotados com a saga da baleação. O ciclo baleeiro, que imprimiu e definiu, em larga medida, o carácter dos ilhéus, chegou ao seu término já nos finais da década de 1980, após ter conhecido o seu apogeu no período que se estende entre o último quartel do séc. XIX e os anos 50, já no séc. XX. Hoje, a memória colectiva daquela época, em que a caça aos grandes cetáceos que peregrinam pelo mar dos Açores providenciava uma parcela significante do sustento das suas populações no aproveitamento industrial do seu “toucinho” e carnes, continua viva como marco identitário preponderante daquelas gentes insulares, embora requalificada e transformada em património histórico-cultural que se enquadra no ethos da consciência ecológica hoje prevalente no pensamento e na acção do Mundo civilizado.
Da baleação nasceram inúmeras estórias, mitos e lendas. Povoam o acervo literário e a tradição oral Mundial com protagonistas que se agigantam no imaginário pela sua estóica heroicidade. Mas os homens que labutaram nos mares, em suas pequenas embarcações e à mercê da fúria dos elementos e daquelas pujantes criaturas marinhas, e as mulheres que, dia-a-dia, esperavam o seu retorno, eram gentes de carne e sangue feitas, frágeis e vulneráveis como dita a nossa condição humana.
Muitos dos jovens baleeiros açorianos foram absorvidos pelas armações da Nova Inglaterra, nos EUA, perdendo-se para sempre no horizonte da aventura, para nunca mais regressarem às ilhas que os viram nascer. Diluíram-se nas malhas do progresso, em terras norte-americanas, onde os seus empreendimentos ajudaram à construção do seu destino.
A grande leva de emigração açoriana para os EUA e Canadá que surgiu nos anos pós-guerra, foi em grande parte despoletada pelas erupções do Vulcão dos Capelinhos, na Ilha do Faial, nos anos de 1957 e 58. Impelidos pela necessidade e pelos parcos recursos nas ilhas à sua disposição na altura, as gentes açorianas, mais uma vez, buscaram na emigração a solução para os seus problemas. Dentre aqueles que partiram, muitos jovens baleeiros, que assim legaram à memória histórica das ilhas a sua participação na saga baleeira açoriana. Os irmãos Albertino José Machado e Marino Machado foram dos que emigraram, encontrando no Canadá o tão ansiado refúgio onde reconstruir suas vidas e criar suas famílias.
Hoje, já octogenário e aposentado, Albertino José Machado regressa aos anos da sua juventude, numa viagem através do tempo que o transporta de novo para o alto-mar, para os diminutos botes e lanchas, de onde os baleeiros açorianos arpoavam os grandes cetáceos. Numa singular e exclusiva entrevista concedida ao portal Adiaspora.com, Albertino José Machado relata ao seu conterrâneo e contemporâneo, Manuel Cândido Martins, as suas recordações da Ilha do Pico, e dos baleeiros picoenses de antanho.

ADIASPORA.COM: Hoje está aqui presente o Senhor Albertino José Machado, para nos falar sobre os antigos baleeiros das Lajes do Pico. Contar-nos-á as reminiscências de sua vida na caça à baleia. Quantos anos tinha quando arriou pela primeira vez?

ALBERTINO JOSÉ MACHADO: Dezoito anos de idade. Tirei a cédula com dezasseis e com dezoito, ingressei na vida baleeira.

ADIASPORA.COM: Na sua vida de baleeiro, naqueles tempos, nesses tempos já recuados, quais eram as suas impressões quando arriava à baleia.

A.J.M.:  As de qualquer um que lá ia, era ver se o nosso bote a trancava.

ADIASPORA.COM: Mas não tinham receio daqueles monstros marinhos quando vinham à superfície e junto aos botes?

A.J.M.: Era o que nós queríamos! Quanto mais perto estivéssemos, mais sujeitos estávamos a apanhá-la. Felizmente, nunca tive receio da vida baleeira, senão numa ocasião, quando se perdeu um dos bons companheiros da baleação num desastre que lá houve. Felizmente, foi o único que sucedeu no nosso porto daquela forma. Foi um arpoador que foi pela proa do bote fora e morreu.

ADIASPORA.COM: Refere-se ao Francisco Bruques?

A.J.M.: Sim.

ADIASPORA.COM: Mas além do acidente que aconteceu a Francisco Bruques, houve outros?

A.J.M.: Sim, mas nada que se parecesse: uma costela partida de um toque que a baleia desse no bote e o companheiro batesse contra a borda - o que felizmente, no meu tempo, nunca se deu - ou um corte, uma picadela do arpão. Por exemplo, quando o José Bento se cortou na perna, o bote deu uma pancada na vaga do mar e o arpão virou e cortou-lhe na virilha.

ADIASPORA.COM: Havia sempre esses incidentes quando andavam no alto-mar…

A.J.M.: Porque havia que ir muito junto uns aos outros, o que não facilitava.

ADIASPORA.COM: Quando o foguete estrelava na vigia …

A.J.M.: Isso era uma alegria! Eram os rapazes e gente grada todos a gritar “Baleia! Baleia!” Às vezes era de manhã e ainda estávamos na cama. Toda a gente gritava “Baleia!” e fechavam as oficinas ali junto ao porto, para irem ver sair os botes, lá para fora para o Caneiro, que o senhor conhece bem.

ADIASPORA.COM: Nas estórias que o escritor Dias de Melo escrevia nos seus livros, dizia que, quando estrelavam os foguetes na vigia, as mulheres dos baleeiros corriam todas com os seus farnéis para entregar aos seus esposos. Nas Lajes do Pico, também era assim?

A.J.M.: Nas Lajes não. Iam algumas, mas aquelas que viviam já junto à Lagoa. Por exemplo, uma senhora da Ribeira do Meio não ia correr um quilómetro e tal! Não chegava a tempo! Aqui, chegava-se e cada companheiro sabia qual era o seu bote e ala! Assim que o bote batia na água, saltávamos para dentro, e lá andávamos.

ADIASPORA.COM: Consta-se que, nos botes, havia uma massa rija qualquer que comiam em certas ocasiões. Que tipo de massa era essa?

A.J.M.: A rosca, aquela massa torcida. Havia catorze, salvo erro, em cada keg, umas caixas de zinco que andavam por baixo, no leito do bote. Muitas vezes, não estavam boas, nem sequer para deitar aos peixes!

ADIASPORA.COM: O que significa que não providenciavam roscas frescas cada vez que arriavam?

A.J.M.: Não, nem lhes tocavam, porque quase todos nós levávamos um farnel com qualquer coisa para comer. Às vezes levavam pão, outras vezes era um bocado de bolo e queijo ou bolo e peixe. Não, o keg era só em último recurso. Olhe, nos anos todos que arriei à baleia, o bote no qual eu arriava abriu o keg só uma vez por falta de comida. Foi uma vez! Por exemplo, o senhor tinha de mais, dava-me um bocadinho, outro que tinha de mais, dava outro bocadinho e pronto! Sabia melhor do que o conteúdo do keg!

ADIASPORA.COM: Consta-se que antes de serem as lanchas a rebocarem as baleias, (era a Hermínia e a Lourdes), rebocavam-nas a remo.

A.J.M.: Era a remos, mas eu felizmente não apanhei esse tempo. Quando comecei a arriar, já tínhamos cinco lanchas no nosso porto e treze canoas.

ADIASPORA.COM: Mas mesmo com as lanchas a rebocar, às vezes levavam uma noite inteira! Então com os barcos a remo, que tempo que levavam a chegar à baía das Lajes!

A.J.M.: Havia um oficial, o José Manuel Machado, que lhe chegou a arrebentar sangue debaixo dos braços para passar a ponta do Castelete, com o vento forte a empurra-la para trás. Felizmente, não apanhei isso! Quando comecei a arriar, já a baleação era muito diferente.

ADIASPORA.COM: O Senhor Albertino está hoje com quantos anos de idade?

A.J.M.:  Sou uma criança! Tenho apenas 87, feitos no dia 4 de Agosto!

ADIASPORA.COM: Com 87! Contudo, está com a memória bem nítida para poder contar-nos estas estórias!

A.J.M.:  Dizem - mas não me lembro - que nasci no dia 4 de Agosto de 1923!

ADIASPORA.COM: Consta que, uns anos depois, o Senhor Albertino, embora tivesse continuado na caça à baleia, fê-lo como maquinista de uma das lanchas. Qual das lanchas era?

A.J.M.: Era a lancha Lourdes, conhecida pela lancha do Tiauguinha, a que tinha a cinta verde. A Hermínia tinha a cinta acinzentada, era aquela que tinha losangos. Essa era a lancha do meu sogro.

ADIASPORA.COM: Referente às lanchas e mesmo aos botes, havia vários donos, havia várias companhias e tripulações? Como estavam organizados?

O Porto das Lajes do Pico

A.J.M.: O nosso porto das Lajes tinha sete armações baleeiras. Eram formadas por um grupo de pessoas, cada um entrava com um x. Eu, por exemplo, não era sócio de nenhuma das armações. A armação mais nova que tínhamos lá, era a companhia para a qual trabalhei. Era a Joaquim José Machado, conhecida por “Misérias”. Tinha dois botes. No tempo em que entrei para a baleação, já todos trabalhavam em parceria. Antes, houve uma grande rivalidade entre a vila e a Ribeira do Meio, mas no tempo em que fui, já estavam, há anos até, juntos em parceria. Quer isto dizer o que um bote apanhava era igual para todos. As Ribeiras tinham três armações talvez: a Americana, que era o Tavares; o Mestre José Costa e Os Corvelos e já não me lembro da outra. Na Calheta (referindo-se à Calheta de Nesquim), eram duas, era o José Cristiano de Souza e a outra era Os Machadinhos, pois não sei o nome completo deles.

A Lagoa das Lajes do Pico

ADIASPORA.COM: Havia o Sebastião Machadinho - não sei se era esse que estava envolvido – que depois foi para a Califórnia. Havia o Senhor José Medinas, que também não sei se estava envolvido nisso ou não, mas esse era na Calheta de Nesquim.

A.J.M.: Lá eram só duas armações, e no porto de São Mateus havia uma só, que era do José Inácio de Lemos. Essa companhia de São Mateus foi depois comprada pelo Cais do Pico. Eram estas as únicas armações da Ilha do Pico. São Jorge, havia não sei quantas, lá nas Relas, e na Graciosa. No fim, todas as ilhas, ou quase todas, tinham botes baleeiros.

ADIASPORA.COM: Consta-se que na freguesia de São João também existiu uma armação baleeira, Dizem que foi antes das das Lajes, mas não possuo datas, nem outros dados mais concretos sobre o assunto. Lembra-se de alguma coisa a respeito?

A.J.M.: O que lembrou dessa armação foi que eu fui conhecê-la nas Lajes, porque as Lajes comprou-a. Ela, nas Lajes, tinha o apelido de Queijeiros. Aquelas armações tinham todos apelidos. Por exemplo, eu arriava nos botes do Misérias. O bote era o Nossa Senhora de Fátima, mas o apelido era Misérias. Depois fizeram o bote que era o número 14, cujo oficial era o Henrique. Como era o nome do bote? Desculpe, mas agora não estou a recordar. Se me recordar, depois digo …Essa outra que era a Venturosa Lajense, que era a do Manuel José Machado, essa era a de São João. Era Os Queijeiros, e a do Manuel da Emília era Os Toucinhos. Da vila era Os Serrafilhas, Os Judeus e As Senhoras. Aquilo era o que mais podia a pôr apelidos! Das lanchas da baleia só a Lourdes e a Hermínia não tinham apelidos!

ADIASPORA.COM: Bem, consta-se também que o pessoal da ilha, e de quase todos os lugares, era conhecido por apelidos. Se perguntássemos por eles pelo nome, quase ninguém sabia. Se fosse pelo apelido, já imediatamente se localizava a criatura!

A.J.M.: Já ouvi essa estória, mas acredito, porque no meu tempo encontrei isso! Os apelidos! Não havia ninguém que não tivesse apelido!

ADIASPORA.COM: A SIBIL, a fábrica de aproveitamento da baleia que veio para lá (referindo-se o interlocutor à vila das Lajes do Pico) e que foi instalada ali, no Portinho, junto à Ribeira do Meio, já foi do seu tempo? Chegou a balear para eles?

A.J.M.: Baleei, mas raras vezes de bote. Já nesse tempo, reboquei (eu não, foi a lancha, mas eu é que vinha de maquinista!) a primeira baleia que ela derreteu. Foi uma baleia de cardume, apanhada pelo João Luís.

ADIASPORA.COM: Lembra-se dos nomes de alguns vigias do seu tempo e cuja actividade se prolongou por algum tempo durante a sua estadia por lá?

A.J.M.: Depois de eu começar a arriar à baleia, era o Francisco. Já não apanhei o Materiano, que já estava para a Graciosa. O Francisco foi até ao fim, até eu sair de lá. Esteve lá um rapaz de São Mateus, que casou lá, nas Lajes, e que também esteve algum tempo. Depois foi para a Queimada, penso eu. De resto, foram os únicos vigias que conheci.

ADIASPORA.COM: Senhor Albertino, quais são as recordações que guarda desses tempos?

A.J.M.: Em que sentido?

ADIASPORA.COM: Se são boas ou más, se ainda tem recordações, ou se ainda se lembra…

O costelete e a Vila vista do Forte de Santa Catarina

A.J.M.: Do pior que lá aconteceu, e estive envolvido no assunto. No dia 15 de Agosto de 1948, ao rasgar da manhã, o vigia deu sinal de baleia. Eram bulls grados. Arriámos. (Não sabíamos se eram grandes, se eram pequenos. Depois lá fora é que soubemos.) Eu ia sentado, a olhar para fora, e disse ao meu oficial, “Oh Mestre Manuel! Está um bote nosso trancado ali e vão pondo bandeiras e os botes vão chegando lá todos e o Ferro não põe bandeira. Este, por sua vez, disse ao Mestre Tiauguinha (pois íamos atrás da Lourdes), “Vai direito àquele bote!”. Ele lá foi. Chegámos lá. Quando estávamos perto do bote, vi uma baleia. Eu disse, “Olha uma baleia aqui que vem direita à gente!” É claro, mandaram deitar o cabo ao mar, fomos à baleia e trancaram-na. Tudo normal. Por acaso, ela até foi muito boa, porque se ela bate, não sei se estava hoje aqui a falar. Ficávamos em cima dela, ou ficávamos encalhados noutro bote! A gente ia à cabeça… O Mestre Manuel mandou apanhar os remos, mas o trancador - era o filho do Mestre Tiauguinha - olhou por cima do ombro. “Oh padrinho da minha alma, o lugar é meu!”, que é o cabeça da cabeça. E fomos lá e trancamos a baleia. Os dois botes ficaram encalhados um no outro e podiam bater. A baleia ficou ali e não bateu, porque se ela bate, não sei se era verdade! Não punha a mão! Depois começámos a trabalhar normalmente, a trabalhar normalmente. Atámos a baleia, mas quando estávamos à espera dela morrer … (aquilo quando são as últimas lançadas, não é bom ir a ela, porque ela tem uma altura que corre e não se desvia a nada. O que estiver na frente fica, porque adiante, ela fica de espiráculo no ar, morta. Fomos embora e passa a lancha Aliança. O filho do Mestre Francisco era o que estava de mestre nela, porque o Mestre Francisco estava doente. E eu disse-lhe, “Oh Manuel! (era o Manuel Joaquim), Oh Manuel! O que é que aconteceu? Esta gente anda toda com a cabeça entre as pernas? O que andas a fazer?” e ele disse, “Essa baleia matou o Francisco Bruques, ele foi embrulhado na linha. O que calhou foi que a baleia estava morta também, porque senão nunca mais a matávamos!” Ficaram todos aterrorizados, não é? O Mestre Manuel desorientou e saltou para a Aliança, pois ela estava ao pé de nós. Foi para a baía das Ribeiras chamar os outros botes. Ele nunca devia ter saído do bote para fora! O José Tiauguinha, que era o trancador, é que foi fazer de guarda oficial. O José Materiano foi puxar a linha para a proa e o outro ardeu! Nós estávamos a puxar a linha, ora estavam as linhas do Manuel Moniz, que era o bote que a tinha trancado da primeira vez. E o José Materiano dizia, “ Eu estou muito aquém nesta linha!” Chegou a uma altura que o tratei mal. Não sei se chegaste a ouvir algum dia que um fosse embrulhado nas linhas que apareceu? É porque eu estava primeiro. Depois puxaram um bocadinho de linha. A nossa companha estava a maior parte da cor da casca da laranja! Fomos puxando a linha, fomos puxando a linha e às tantas ele diz-me assim, “Olha para fora de bordo!” Quando olhei, ainda ele estava fundo (referindo-se ao corpo do malogrado colega). Mostrava bem o que ele era, e havia muitas coisas à volta! Eu também tive uma ideia fraca. Lembrei-me que era ele de partida. A verdade, confesso. Eu disse, “Puxa depressa!”, pois aquilo no mês de Agosto, há muita tintureira e ela tem má fama. Nós hoje tão pouco gostamos de andar com as mãos nela. Depois chegou o homem à borda (aludindo ao baleeiro morto), abracei-me ao homem para o meter dentro, mas ele ainda pesava. Eu pesava pouco, mas ele pesava menos. Era um homem forte, por acaso, mas não era gordo. Abracei-me a ele. Eles estavam fazendo não sei o quê, que ninguém me deitou a mão. Eu talvez chamei nomes que não devia ter chamado! Eu disse “Peguem-me no cinto!”. Depois quem pegou foi o meu irmão. Puxaram-me para trás, vieram ao meu encontro e meteram-no dentro. Nós metemo-lo em cima da quilha do bote, atrás. Então, começaram a fazer contas de cabeça como era para trazer o homem para terra.

ADIASPORA.COM: Como era o nome desse seu irmão?

A.J.M.: Marino Machado. Mora mais abaixo da minha casa (em Toronto). Ainda ontem ele esteve lá, por acaso… De maneira que depois eu disse, “ Não há problema nenhum. O homem não vai aí deitado bem por cima da quilha? Não há problema”… Depois eu disse “ Quem tem aí uma caixa de trazer comida?” e o José Tiauguinha respondeu, “ Tem ali a minha.” “Posso ir sentado sobre ela?”. “Podes.” “Então pronto!”. Puxei a caixa para o meio, mais ou menos, da quilha do bote, sentei o homem em cima de mim, das pernas, e fui eu que o trouxe para terra. Mas a Aliança nunca chegou para pôr o Mestre Manuel no bote. E quando vínhamos pelo baixio acima, não sei quem, mas acho que foi o José Tiauguinha, disse, “ Isto é uma chatice! O meu padrinho não está aqui. Vamos entrar com falta de um homem e vai ser num dia de Junho! Vocês punham a giba grande por detrás de si!”. Pus. Pus não, alguém pôs por detrás de mim a giba, por causa de que, quando entrássemos no Caneiro, eles não poderem voltar-se a nós. Íamos por lá dentro. Chegaram cá, e o filho do Mestre Manuel estava em cima de cais, porque ele ia para a vigia. Assim que fechava a oficina, ele ia para a vigia ver as baleias, ver o que se estava passando. Ele estava ao par de tudo, mas quando foi para entrar dentro do Caneiro, ficámos de maneira a que eles podiam ver que eu trazia um. Aí, o Manuel esteve quase a deitar-se ao mar. “Calma, homem! Calma, que o teu pai está na Aliança!”. Depois fui ajudar a levar o Francisco a casa, mas já não entrei. Não pude entrar por causa dos pequenos. De maneira que depois viemos para casa mudar de roupa, e lá foram eles pôr a baleia dentro. E foi assim a tragédia. E isso, é claro, é uma coisa...(emocionado)

ADIASPORA.COM: Hoje, o Senhor Albertino está a contar-nos a estória, mas ainda se comove ao lembrar-se desse dia. Desculpe por estar a puxar por si, mas são coisas que queremos saber, porque se não as contar agora, nunca mais as saberemos...

A.J.M.: Eu sei.

ADIASPORA.COM: ... e perdem-se no Tempo...

A.J.M.: Mas isto aconteceu (aludindo à sua comoção) depois de eu ter iniciado o relato desta tragédia aqui. De uns três anos para cá, que isto não me chocava! Desculpem!

ADIASPORA.COM: Não me vou alongar muito mais. Depois de terminada a sua vida de marinheiro, passou para a lancha...

A.J.M.:   ... Lourdes, porque depois de ter vindo da tropa, a mania que eu tinha era de tirar a carta de maquinista. Se eu tivesse pensado nisso antes, tinha a tirado na Terceira, pois ali era como a casa de muito filho e pouco bolo. Quando um queria um quarto, o outro também queria. Calhou numa altura em que havia muitos que o queriam também e cujos pais eram maquinistas. É claro que eles tinham preferência. Eu já tinha perdido as esperanças de um dia ser maquinista, a verdade é assim. Na altura, estava na Ribeirinha, na canalização da água da Ribeirinha. Tinha saído da construção do convento, porque eu estava lá já há oito meses quando cheguei ao pé do Mestre José Belisca e disse, “Oh, Mestre José, a minha mãe esperou por mim nove meses, mas eu não quero esperar por dinheiro nove meses, porque se eu fosse rico, não andava a trabalhar para os outros! De maneira que se não me der o dinheiro no Sábado, melhor será contratar outro para vir para cá!”. E foi assim.

ADIASPORA.COM: Essa agora do dinheiro faz-me lembrar outra coisa. Como é que viviam, porque também diziam que as soldadas da baleia também só apareciam de ano a ano?

A.J.M.: Era só. Levávamos uma vida bem apertada! Estávamos como o nó da linha na agulha. Levávamos uma vida apertada. Eu trabalhava na descarga do vapor, trabalhava na baleia e ainda trabalhava nas minhas terras. Mas todo o trabalho que me aparecesse que me possibilitasse ganhar qualquer coisa, eu lá ia. E queria um escudo muitas vezes e não o tinha. Era assim a minha vida. A minha não, a nossa vida, pois era tudo da mesma maneira! Se um ia ao mar e apanhava um peixe – eu nunca gostei de andar à pesca, a verdade é essa – vendia o peixe fiado! Ainda hoje está algum por pagar! É verdade.

Traineira da pesca do Atum na lagoa das Lajes do Pico

ADIASPORA.COM: Mas se alguma ainda está por pagar, esses que já o comeram já não estão por cá de volta!

A.J.M.: A nossa vida era muito apertada. O Senhor Martins acredita que eu vim para o Canadá e ainda ficou lá seis contos e tal por receber!

ADIASPORA.COM: Acredito porque era a vida do tempo, a vivência daquele tempo era assim. Foi por esta razão que tanto você como eu tentámos emigrar. Emigrámos para melhorarmos de vida, mas a saudade da terra não desapareceu, e hoje continuámos longe e sempre ligados à terra.

A.J.M.: Eu, por acaso, sou um doente nesse sentido! É verdade. O Canadá é muito rico e gosto muito deste país, mas nunca me esqueci do que por lá andei. Mas a vida é assim! Hoje, eles são todos ricos! (relativamente aos açorianos que vivem nas ilhas na actualidade).

ADIASPORA.COM: As baleias para serem trancadas provavelmente tinham de ter um certo comprimento. Como é que as mediam, ou como faziam para determinar as suas dimensões?

A.J.M.: Os botes tinham um traço marcado na borda. Depois da baleia morta, se houvesse dúvida, encostavam-na ao bote, do traço à popa, e assim já sabíamos quantos metros tinha.

ADIASPORA.COM: Se a baleia não atingisse essa medida, o que faziam?

A.J.M.: Deixavam-na fora, porque depois o oficial podia ir para a cadeia. Na Lagoa, que o senhor conhece bem, andou uma. Apanhámos a mãe e ela veio atrás de nós por lá dentro. Esteve lá dentro, a virar da direita para a esquerda, até que se foi embora.

ADIASPORA.COM: Veio sempre atrás da mãe! Mesmo depois da mãe já morta e rebocada, ela nunca a deixou?

A.J.M.: Veio por lá dentro, e lá ficou dentro da lagoa. Andou por lá um bocadinho e depois calhou de encarreirar pelo Caneiro fora.

ADIASPORA.COM: É para ver o que é o instinto filial! Nós todos temos instintos, e um animal pequeno, devia de ser pequeno provavelmente...

A.J.M.: Pequenina, era pequenina, pois podia ter uns três ou quatro metros.

ADIASPORA.COM: Quando chegavam à rampa, como faziam para trazer as baleias para cima? Havia guindastes?

A.J.M.: Não havia guincho. Isso era na fábrica.

ADIASPORA.COM: Não, na rampa do Caneiro?

A.J.M.: No Caneiro, era com os cabrestantes. Havia cabrestantes, engatava-se e ia-se girando, e a baleia vinha andando até onde nós queríamos. Depois é que os homens a cortavam, geralmente os trancadores.

ADIASPORA.COM: Nos dias em que se de derretia a baleia, eu, claro, estava ali presente. Gostava de viver aquilo como se fosse um dia de festa! Uma vez trouxe maçarocas de milho, e o Palim agarrou nelas, amarrou-as num arame e pô-las dentro do caldeiro. Lembra-se de eles fazerem isso com outras coisas?

A.J.M.: Muito bem! Com batata-doce. Descascávamos as batatas, cortávamos às rodelas e enfiamo-las num arame. Ficava ali um rosário feito. Chegava-se lá e havia o homem que estava atendendo aos potes de derretimento, e dizia-se, “Oh, Senhor Fulano Tal. Oh, Tio Fulano Tal! Oh, Tio Fulano Tal, posso botar?”. E ele cuspia no azeite. Se o azeite respingasse e lhe fritasse o cuspo, ele dizia, “Deita, rapaz!” Se este dissesse, “Espera um bocadinho”, era para dar tempo para a fervura chegar ao máximo.

ADIASPORA.COM: Eu cheguei a comer o milho. Batatas, nunca comi. O milho era saboroso quente, mas depois de frio, não dava. Vocês comiam também quente, não era?

A.J.M.: Quente. Aquilo tinha de ser com um calor que a boca pudesse aguentar, pois podíamos escaldar a boca! Mas cheguei a comer carapau, daquele miudinho, daquela ruama, cheguei a comê-la frita no azeite. Era saboroso. O Mourão, o filho daquele Machadinho da Ribeira do Meio, que  andava sempre com o caniço perto de si, foi apanhá-la e trouxe para experimentar. Mas eu gostava! Tem de ser numa determinada altura, (referindo-se ao azeite de baleia na fervura), quando está no máximo e os torresmos estão ainda a derreter, porque se for antes e que apanhe gosto ao azeite! ... É meter e deixar apenas uns segundos. Assim, fica a modos de tirar para fora todo lourinho!

ADIASPORA.COM: Diz-se que havia quem comesse os torresmos. Chegou a provar?

A.J.M.: Eu nunca vi, nunca vi ninguém comer, nem nunca experimentei. Sei que aquilo parecia uma borracha, mas de resto não sei, porque era tudo cortado às fatiazinhas. Fazia-se bocados, assim, de toucinho que depois era todo amaciado e frito. Eu, por acaso, nunca provei.

ADIASPORA.COM: Sim, mas teve conhecimento que outros o faziam?

A.J.M.: Parece que sim, mas eu nunca vi fazer, a verdade é essa.

ADIASPORA.COM: Quando a baleia entrava na rampa, quem a esquartejava? Eram os marinheiros dos botes, ou outros que ficaram em terra?

A.J.M.: A companhia da fábrica tinha empregados...

ADIASPORA.COM: E antes da fábrica existir?

A.J.M.: Antes da fábrica, eram os marinheiros que as apanhavam que as derretiam, desmanchavam e faziam tudo.

SIBIL a nova fábrica de aproveitamento dos derivados da Baleia

ADIASPORA.COM: Depois, quando a fábrica veio, os empregados é que faziam tudo isso. Tenho a impressão que deverá haver mais algum assunto que agora não nos vem à ideia. Vou deixá-lo falar mais um pouco sem lhe fazer perguntas...

A.J.M.: Por exemplo, apanhávamos uma baleia grande. Estavam todos a trabalhar nela e, no outro dia, aparecia baleia, pois a vigia nunca parava. Metade do pessoal dos botes ia para a baleia e a outra metade ficava em terra, para derreter e cortar as que tivesse, porque quando eram baleias de cardume, às vezes elas chegavam a arrebentar na Lagoa de inchadas. De maneira que tinham de ter sempre gente, e era a marinhagem que fazia tudo. Depois da vinda da fábrica, era tudo diferente. Cheguei a levar baleias ao Faial, para a fábrica do Faial, cheguei a ir à do Cais do Pico, e fui para a das Lajes.

ADIASPORA.COM: A abertura da fábrica nas Lajes do Pico, foi para aproveitar tudo que era da baleia, porque antes, depois de lhe tirarem o toucinho, elas eram conduzidas para o alto-mar e depois vinham encalhar nas costas, onde ficavam a dar um cheiro, às vezes terrível. Porquê que faziam isso?

A.J.M.: Não tinham as aparelhagens para aproveitarem as carnes, por exemplo, para fazer os adubos. Não estavam preparados para isso. De forma que, geralmente, eram deitadas no alto-mar, como disse, ou então eram encalhadas na costa, em lugar longe das casas, para se desfazerem lentamente. Isso atraia muito peixe para os mares.

ADIASPORA.COM: Vamos terminar aqui esta entrevista. Agradeço muito por ter vindo até nós, até à Adiaspora.com, chefiada pelo nosso amigo José Ferreira, que lhe vai agradecer com outras palavras. Senhor Albertino, muitíssimo obrigado. Já são horas de ir para casa, por que tem de almoçar às duas horas, não é verdade?

A.J.M.: Isso não é indicativo! Almoça-se às três ou às quatro...

ADIASPORA.COM: A sua esposa é que recomendou. Mais uma vez, o nosso obrigado!

 

Manuel Cândido Martins, o baleeiro Albertino José Machado, e o director
de Adiaspora.com, José Ilídio Ferreira

 

 

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